[...] que tinha sido desperdiçada. Oitenta anos depois, o Brasil se torna o primeiro país no qual fica incontornável o fato de que o experimento de desmembramento do Facebook em redes sociais menores, iniciado anos antes, tinha se esgotado. São apagadas ou passam a ser consideradas oficialmente inativas as últimas contas de três das cinco redes sociais que ainda restavam do desmembramento. Redes sociais que, poucos anos antes, pareciam estar se multiplicando às centenas. O país encontra-se então, para efeito quantitativo do uso de redes sociais, novamente perfeitamente polarizado entre dois extremos. As duas redes sociais restantes somam quase 90% da população do país e consolidam praticamente todo o debate político, social e cultural que ocorre em redes sociais. A sobreposição de orientações ideológicas é mínima, ainda que, contraditoriamente, a unicidade das pautas que regem o debate é quase que completa. Em outras palavras, em ambas fala-se sobre as mesmas coisas. Se numa da redes sociais são contra, na outra, são a favor. Se numa querem mais, na outra, menos. Se numa já se passou há muito do ponto do 'basta', na outra ainda é insuficiente. Ah, contraditória simetria. De todo modo, o Facebook, mais uma vez, engole-se a si mesmo, mas agora contra sua vontade.

Naquele mesmo ano de 2022, Donald Trump finaliza a primeira metade do seu segundo mandato como presidente dos EUA. Sua popularidade, inesperadamente, volta a crescer conforme sua solução bélica dita o tratamento e a percepção pública do que veio a ser conhecido como "Segunda primavera árabe". No ano anterior, 2021, Trump ordenara o inicio de sua segunda grande intervenção militar no que antes era a zona fronteiriça entre a Líbia e o Egito. A região encontrava-se fraturada por uma guerra civil que, diziam, encaminhava-se para um destino similar ao que já tinha exaurido a Síria quase por completo no momento do aniversário de uma década do conflito instalado ali. Com a significativa diferença que a guerra no norte da África parecia trazer consequências muito mais graves para economias dependentes das indústrias mundiais de produção de baterias e placas solares, já totalmente inseparáveis da necessidade de extração dos minérios disponíveis em abundância nas areias dos, ironicamente, grandes desertos da região. Para uns, negócios como sempre, tudo se passava como se essa guerra africana não fosse nada mais que, de novo, os interesses do capital ditando a longa sequência de eventos aparentemente significativos da história.

Mas para outros, a guerra no norte da África era um desdobramento do crescente desfacelamento provocado pelos muitos protestos organizados nas novas redes sociais introduzidas por aquele desmembramento do Facebook ocorrido ao final de 2020. Propelido pela repetição do fracasso em conter as ondas conservadoras que já tinham elegido Donald Trump em 2016, Mark Zuckerberg anunciara fria, triunfante e cientificamente a solução para as incertezas políticas que pareciam afligir (em maior ou menor grau) quase todos os países do planeta.

Entre 2017 e 2020, um quantidade enorme de estudos foi levada a cabo pelos especialistas da empresa, amplamente auxiliados por análises realizadas pelo que se convencionou chamar de "inteligências artificiais por rede neural". Com acesso irrestrito a todo o conteúdo das três redes sociais controladas pelo Facebook à época, concluiu-se que o cerne do imbróglio estava no fato de o Facebook ter centralizado praticamente todas as trocas sociais virtuais em uma única plataforma. Essa plataforma, o próprio Facebook (então ainda disfarçadamente distribuído entre o facebook.com, instagram e whatsapp) funcionava de modo que não possuía (e nem de longe poderia possuir) a variedade e elasticidade para acomodar a infinidade de diferentes concepções epistemológicas, filosóficas, políticas, culturais, sociais e assim por diante que são intrínsecas à pluralidade da experiência humana. Por isso, menos de um mês após o anúncio dos novamente chocantes resultados das eleições norte-americanas de 2020, que confirmavam a volta de Donald Trump à Casa Branca, o Facebook anuncia oficialmente que se desmembrará em uma centena de outras pequenas redes sociais numa espécie de auto ação anti-trust.

Os especialistas citavam-se uns aos outros e defendiam o desmembramento com vigor, os mais radicais, já em 2019, diziam: "Imagine por um momento que houvesse uma ferramenta de comunicação que pudesse ser usada por qualquer um (afiliado a qualquer discurso do espectro político) mas que, ao mesmo tempo, ela fosse usada também por um adversário total para um objetivo que se desejasse completamente oposto. Que tipo de oposição real poderia ser configurada por uma ferramenta assim? Que tipo de contaminação haveria entre as partes que a utilizam? Que tipo de predeterminação formal estaria, mesmo que involuntariamente, dada por essa ferramenta aos lados supostamente opostos? Uma guerra não define apenas a posição dos oponentes um em relação ao outro, mas a disposição de ambos a guerrear. Aí eles se encontram, isto é, na mesma filiação à forma da guerra, em outras palavras, no uso de uma mesma ferramenta. Em uma unidade acachapante, essa ferramenta já existe e se chama Facebook."

No início houve grande comoção, os usuários estavam confusos, sentiam-se traídos, deslocados; não entendiam o que eram essas novas redes sociais. Mas logo, como sempre, tudo se normalizou: já em meados de 2021 as novas redes sociais tornavam-se incrivelmente populares, mais ainda que o próprio facebook.com já tinha sido algum dia. A duplicação no número de usuários, atingida já em 2022, em míseros dois anos, era um feito assombroso até mesmo para o incansável Mark Zuckerberg.

A redistribuição dos usuários havia sido automatizada e inteiramente levada a cabo pelos algoritmos de inteligência artificial com base na análise das mais variadas formas de afinidades entre os usuários do antigo facebook.com. Uns diziam que tinham sido utilizados, entre outros, os esquemas mais avançados de psicometria do tipo OCEAN — outros ironizavam que as máquinas brincavam de Tinder com os perfis das pessoas, combinando-as num número impensável de "matches". Mas, ainda mais impressionante à época, era o fato de que também era resultado do trabalho dessas formas de inteligência artificial o design mesmo dessas novas redes sociais; e não só as cores ou layout, mas também o próprio modo de funcionamento de cada uma delas. Tudo era projetado e funcionava de modo condizente com as concepções e orientações dos usuários que tinham sido designados a ocupá-las. "Designados" não, como insistia o Facebook — tentando afastar-se, como sempre, de qualquer percepção de autoritarismo — eram apenas "sugestões", pois os usuários eram inteiramente livres, como supostamente sempre tinham sido, para participarem (ou não) de qual, ou quantas, das novas redes sociais quisessem.

Seja como for, cada um desses novos ambientes virtuais era inegavelmente muito mais agradável e, por incrível que possa parecer, eram ainda mais viciantes que o facebook.com jamais tinha sido. Seguindo a nova filosofia de organização múltipla, o universo de redes sociais parecia ser quase tão diverso quanto se poderia conceber. Assim, inesgotável engenhosidade da inteligência artificial, as novas redes sociais de orientação anarquista, por exemplo, nem exigiam a existência de uma figura de 'administrador' na sua estruturação. As novas redes sociais voltadas para os indivíduos sem orientação de gênero normativa, removiam por completo a exigência de opções fixas nos seus perfis. Por outro lado, as redes sociais que se poderiam chamar de 'mais neoliberais' se organizavam e eram regidas inteiramente ao redor das trocas monetárias e privadas que aconteciam nelas. E assim por diante ia fazendo a inteligência artificial para cada um dos agrupamentos, agremiações e afiliações, que os humanos, incomensuravelmente mais limitados, sequer teriam como ter concebido para começar.

Todas essas novas redes sociais tinham ainda, como se não bastasse, o brilho atraente das novidades cativantes e propostas constantes de melhorias feitas pela inteligência artificial que as redesenhavam a todo tempo. A especialização em psicologia obtida por Mark Zuckerberg durante a gradução em Harvard e o investimento pesado do Facebook na contratação de especialistas da área trazia os frutos tão almejados pela empresa que, apesar de nunca ter dado sinais públicos de que iria diminuir, tinha dado aos seus investidores alarmantes indícios de que parava de crescer.

A desaceleração do crescimento do Facebook, detectada já em 2018, era dada, por um lado, pelo que parecia ser o esgotamento do seu alcance e, por outro, alguma espécie de fadiga generalizada. Há quem diga que a motivação do desmembramento ocorrido em 2020 sempre tinha sido muito mais econômica do que de qualquer outra possível natureza política ou ética benevolente. Simplesmente porque o Facebook estava perdendo, a cada dia, milhares de usuários cada vez mais cansados do estresse psicológico a que crescentemente viam-se submetidos. Tudo aquilo parecia não só ser inútil, como também uma grande perda de tempo. E com o passar do tempo, os analistas de Zuckerberg vinham se aproximando de decretar uma tendência que poderia se tornar perigosamente incontrolável: o crescimento dos suicídios virtuais nas redes sociais do Facebook, ou seja, que os usuários estavam parando de usá-las definitivamente, uma verdadeira debandada que apontava um colapso inexorável. Mas a debandada foi extirpada pela raiz, rapidamente estancada e magistralmente revertida pela grande reorganização de 2020.

Mesmo correndo o risco de ser entendido como um posicionamento político, Zuckerberg indiretamente defendeu o desmembramento de 2020 a partir do que parecia representar para ele a volta de Trump ao poder em 2021. Desde o Yom Kippur de 2017, no qual Zuckerberg pediu perdão "pelas maneiras em que o meu trabalho foi usado para dividir as pessoas ao invés de nos tornar mais próximos" ele não tinha sido tão claro na sua tradicional declaração anual, quanto foi em 2020, antes da grande reorganização, quando viria a escrever: "Peço perdão por não ter sido capaz de perceber que trilhávamos o caminho da desagregação, por ter incorretamente entendido que todos os sinais de uma maior unificação contra um objetivo comum que vimos no ano passado só faziam com que nos afastássemos mais uns dos outros. Custe o que custar, continuarei trabalhando para que trilhemos o caminho que voltará a fazer do mundo um lugar melhor".

Nem as longas divagações dos leitores mais astutos poderiam decidir o quanto que a frase "os sinais de uma maior unificação contra um objetivo comum" representava um aceno ao impeachment de Donald Trump ocorrido em 2018, que, como tantos outros eventos políticos da década, havia sido ampla e reconhecidamente organizado nas redes sociais do Facebook. A inesperada queda de Trump em 2018 representava um momento catártico para o história norte-americana, momento com o qual o Facebook parecia se filiar sem receio, ainda que com todo o cuidado da distância de uma suposta neutralidade que permitia que capitalizasse, sem sombra de dúvida, seu valor social e cultural (não muito diferente do que já havia sido feito em 2011 com a "Primeira Primavera Árabe" ou com o movimento Occupy).

Meses antes de ser destituído de seu cargo pela controversa vigésima quinta emenda da constituição, Trump gozava de uma popularidade que não tinha alcançado desde o começo de seu mandato, conseguira a aprovação de quase metade da população norte-americana. Certamente o sucesso da campanha militar contra a Coréia do Norte no início de 2018, que o próprio Trump se gabava de ter batizado de "Segunda Guerra da Coréia", tinha contribuído para a reversão do quadro de desaprovação que se via anteriormente. Mas mesmo isso parece não ter sido suficiente para que a oposição, em grande medida movida pelo pacifismo, fosse capaz de se galvanizar com empenho inesperado para encerrar prematuramente o seu primeiro governo ao final daquele ano de 2018. Uma virada extraordinária, é verdade, mas não necessariamente inesperada, já que se a aprovação de Trump chegava aos 50%, sua desaprovação obviamente também. O envolvimento de grandes empresas do vale do silício para remover o presidente e preservar os seus interesses comerciais (que foram atacados constantemente desde o começo do governo de Trump) era debatido por muito menos pessoas do que se poderia esperar. Se este fosse o caso, Trump estaria realmente em grande desvantagem, porque mesmo governando não podia dispor da máquina do estado norte-americano para continuar a se opor aos interesses das cinco grandes: Amazon, Apple, Facebook, Microsoft e Alphabet, dona do Google — que já haviam abandonado qualquer tentativa institucional ou lobista de frear a sanha conservadora de Trump. Fossem quais fossem as especulações, uma coisa era certa, a campanha pela remoção de Trump tinha sido abertamente orquestrada por, entre outros, a já famosa Cambridge Analytica. Levada pelos interesses de quem quer que fosse, àquela altura qualquer declaração de posicionamento da Cambridge Analytica, dado o seu histórico de eficácia, já era capaz de assombrar qualquer oponente. De notoriedade crescente desde o seu envolvimento na vitória da campanha a favor do Brexit e, depois, alavancada pelo sucesso em eleger o próprio Trump, a companhia, capitaneada Alexander Nix, nunca parecia ter se envergonhado de se apresentar como uma espécie de mercenário: serviria sempre aos interesses dos que lhe pagassem mais. Como foi o caso no Brasil, ao associar-se com a local Ponte Estratégica, formando em 2017, a Cambridge Analytica Ponte. Valendo-se de informações compradas e extraídas quase exclusivamente de redes sociais, a Cambridge Analytica empregava recém-criados métodos de psicometria para passar das tradicionais estratificações por classe social, local e gênero para algo muito mais específico alimentado por big data e a consolidação das informações de redes sociais. Alexander Nix, o presidente da empresa, dizia "Eu posso te dizer qual foto deste candidato uma pessoa vai gostar mais desde que eu tenha acesso a apenas 68 'curtidas' ou 'postagens' feitas em alguma rede social pela pessoa para quem essa foto será mostrada". E depois ele perguntava: "Eu estou te enganando? Não, estou apenas [...]